quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A pressão de ser uma mãe vaca*





Os benefícios do aleitamento materno são indiscutíveis para o bebê. Mas comoficam as mulheres que não podem (ou não querem) dar o peito?





Seu filho tem fome." A frase, dita por uma pediatra na primeira consulta deJoão, na época com 10 dias, caiu como uma bomba para a mãe, a dona de casa Luisa Cortes, de 32 anos. "Minha gravidez foi normal, e tenho boa saúde. Não entendipor que o meu leite não era suficiente. Fiquei arrasada, me sentindo a pior mulher do mundo." João então foi submetido a uma amamentação dupla - primeiro o peito, depois a mamadeira. Ele tem hoje 4 anos, come de tudo, é esperto e falante. Mas Luisa, vira e mexe, ainda se assombra com o passado. "Se ele está mais baixo que os amigos, penso que foi por não ter conseguido amamentá-lo.


"O sofrimento desta mãe é também o de muitas mulheres que não conseguem, ou então decidem, por qualquer outro motivo, não amamentar. Muitos médicos defendem a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde), chancelada pelo Ministérioda Saúde brasileiro, a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) e a SociedadeBrasileira de Pediatria: dar somente leite materno à criança, até os seis meses.


Nada de água, chazinho ou composições industriais que prometem aliviar as cólicas dos recém-nascidos.


"O leite humano é o alimento mais completo, tem tudo o que uma criança precisanos primeiros meses de vida, carboidratos, proteínas, lipídeos e, inclusive, anticorpos que a protegem contra infecções e alergias", afirma Corintio Mariani Neto, presidente da Comissão Nacional de Aleitamento Materno da FederaçãoBrasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. "Não há leite artificial, por mais enriquecido, comparável a ele.


"O pediatra Jairo Len também concorda com a política da OMS e dos órgãos de saúde pública, mas ressalta que as campanhas geram uma cobrança enorme sobre as mulheres. "Não dá para falar mal do leite materno, mas também não dá paraignorar que algumas mulheres não conseguem amamentar", diz ele.


A administradora de empresa Silvia Gomes, 38 anos, teve diagnóstico de hepatite C no início da gravidez do primeiro filho, hoje com 10 anos. Ela não teve de sesubmeter a tratamento porque a carga viral era muito baixa. Mas, quando Gabrielnasceu, o médico a avisou que, se o amamentasse, ele podia ser contaminado e nãopassaria da adolescência. "Optei por alimentá-lo artificialmente, mas me sentimuito mal. Achava que meu filho teria problemas de nutrição e imunidade, e aculpa seria minha."


Depois de oito anos, Silvia teve outro filho, hoje com 2 anos, e conseguiu amamentá-lo naturalmente. Mas, passados três meses, ela resolveu parar de dar o peito, por não aguentar o desgaste de estar sempre alerta à vontade do bebê. Foientão que sentiu na pele o impacto das campanhas de aleitamento materno. "Um dia, dei a mamadeira ao Rodrigo na frente do meu cunhado e ele, surpreso,perguntou: E o peito??. Várias vezes, após ter decidido dar apenas leiteartificial, voltei a amamentá-lo no peito para aliviar a culpa. Pensava que estava sendo egoísta em optar pelo meu descanso, e não pelo mais saudável para o meu filho", diz. Silvia só resolveu o dilema quando se deu conta de que seucansaço não poderia ser saudável para um bebê completamente dependente dela."Hoje a questão é tranquila, mas a patrulha da amamentação tenta tirar o poderde decisão da mãe."


Apesar dos benefícios do leite materno e das campanhas mundiais, as taxas dealeitamento natural no mundo não são lá grandes coisas. Segundo a OMS, ascrianças menores de 6 meses alimentadas só no peito não chegam a 35%. No Brasil,de acordo com o Ministério da Saúde, no primeiro mês de vida de um bebê, 53,1%das mulheres amamentam naturalmente. Mas o índice cai ao longo do tempo: 41,4%(segundo mês), 30,6% (terceiro), 21,6% (quarto mês), 14,7% (quinto) e 9,7%(sexto). No Estado de São Paulo, o quadro é semelhante. Começa com 36,2% dasmulheres dando só o peito no primeiro mês de vida e, no sexto, o índice cai para7,6%.


Lavagem cerebral


Diz a história que, até o início do século 20, praticamente todas as crianças mamaram no peito. Por volta de 1900, foi criada a lata metálica e, depois, oleite em pó. Norma Sanzi, 78 anos, mãe de quatro adultos, não amamentou naturalmente nenhum deles. "Os médicos diziam que o leite artificial era melhor do que o humano. Para mim, acabou sendo muito prático, porque tive um filhoatrás do outro", diz. As coisas começaram a mudar no final dos anos 70, quando se iniciou a valorização do leite materno.


As campanhas foram e continuam sendo importantes. Mas há quem acredite que elas também funcionam como uma espécie de "lavagem cerebral", deixando as mulheres com sentimentos de culpa absolutamente desnecessários. "O leite materno trazvárias vantagens, é prático, econômico e reforça o vínculo entre mãe e filho.Mas a imunidade não é passada por ele, como muitos acreditam. As fórmulaslácteas evoluíram e são capazes de substituir de forma competente o leitematerno. Isso não significa que eu estimule o aleitamento artificial. Mas, nos casos em que o natural é impraticável, não há razão para preocupações ou culpasexageradas", afirma Len.


Em tempo: pesquisas indicam que crianças que nunca receberam leite materno apresentam crescimento, ganho de peso e todos os quesitos de saúde 100% satisfatórios. Além disso, têm uma imunidade absolutamente normal e não ficam mais doentes do que as crianças amamentadas exclusivamente no peito.


Depois dos seis meses só recebendo leite materno, a criança, segundorecomendação da OMS, deve começar a experimentar outros alimentos de forma lentae gradual, mas o peito precisa ser mantido até os 2 anos ou mais. O governobrasileiro concorda. Texto do guia "Promovendo o Aleitamento Materno" diz: "Aamamentação, isto é, dar o peito, é a primeira e mais importante ação no combateà fome, às doenças e à desnutrição, e no fortalecimento do vínculo fundamenteentre mãe e filho".


Seja como for, muitas mulheres reagem. "É um contra-senso. A licença-maternidadeé de quatro meses, em poucos casos de seis. Como a gente pode amamentar tantotempo se temos de trabalhar para dar uma vida digna aos filhos?", pergunta acomerciante Maria Paula Odete, de 28 anos. Com certeza, o aleitamento temconsequências importantes na vida das mães. Por um lado, elas são pressionadas a praticar aleitamentos prolongados. Por outro, pela concorrência no mercado detrabalho. "Claro que tenho medo de perder o emprego só porque quero amamentar."


Bia Rosa, 36 anos, relações-públicas da galeria de arte Nara Roesler, nosJardins, é mãe de dois meninos, um de quase 4 anos e outro de 2, que mamaram no peito até os 6 e 4 meses, respectivamente. "Mesmo que eu tivesse tido muito leite, jamais daria o peito até os 2 anos. É muito estranho imaginar o filhoandando, falando e mamando no peito." Ela também diz que nunca se privou porcausa da amamentação. "Às vezes, eu tirava o leite com a bombinha para podersair e me divertir um pouco."


A historiadora Patricia Pacini, 47 anos, viveu três experiências diferentes comcada um de seus filhos. O primeiro, que nasceu com pouco mais de 2,8 kg, mamou no peito por um mês e meio. "Ele era pequeno demais e gritava de fome", diz. "Eu ficava mais estressada de vê-lo com fome do que com o fato de dar mamadeira." O segundo mamou até os 3 meses e o terceiro, até os 5. "Acho que fui melhorando,mas não daria o peito mais tempo do que isso." Ela diz que conhece mulheres queamamentam no peito e se sentem vigorosas e maravilhosas por isso.


O pediatra Jairo Len não vê vantagens em se manter uma criança no peito até os 2 anos. "Mães que não conseguem desmamar, em geral, ficam ainda pode gerar outros problemas.


"Recentemente, um artigo da americana Hanna Rosin, intitulado "Contra o Aleitamento Materno", esquentou o debate na internet ao afirmar que há uma ditadura da amamentação e que as mulheres deveriam ter o direito de optar.


Um recém-nascido mama entre oito e 12 vezes ao dia, a cada três horas. Cada mamada demora, em média, entre 15 e 30 minutos. Parece fácil. Só que, depois demamar, em geral a criança precisa arrotar, ter a fralda trocada e, com sorte,dormir. Infelizmente, o processo não é sempre assim, e a mãe acaba ficando 24horas à disposição do bebê. Portanto, o debate em torno do aleitamento naturalversus o artificial ainda promete grandes discussões.


Os médicos divergem


O pediatra Jairo Len afirma que algumas situações podem impedir ou dificultar o aleitamento materno. Segundo ele, plásticas de redução de mamas, uso contínuo dedeterminados medicamentos, como antidepressivos, má orientação no início doaleitamento, retorno ao trabalho, baixo ganho de peso pelo recém-nascido e estresse - incluído aí a expectativa de amamentar ? podem desencadear bloqueios.


Já para Corintio Mariani Neto, há poucos casos em que a criança não pode ser amamentada naturalmente. Até as adotadas, segundo ele, têm chance por meio de lactação induzida - ao sugar o peito, o bebê estimula a produção de leite em que não engravidou. "Não é fácil, depende de muita vontade da mãe e de uma equipe bem preparada, mas é possível." Ele diz ainda que a amamentação artificial deve ser recomendada em casos muito específicos, como em mães portadoras de HIV e mulheres que se submeteram à retirada completa das mamas.


Outros laços


Para a psicóloga Tatiana Ferrentini, a decisão sobre a amamentação e qualquer outra que envolva a mulher e seu corpo devem ser tomadas individualmente.


"As campanhas excluem as mulheres que não podem ou não querem amamentar. Elas deveriam mostrar os dois lados da moeda."Tatiana explica que não é contra o aleitamento materno, mas duvida que uma mãe que amamente unicamente no peito por obrigação estabelece um bom vínculo afetivo com o filho. "Uma mulher que olhanos olhos do bebê enquanto dá a mamadeira, sente ternura por ele, cuida, se dá conta da maravilha que é aquele ser e estabelece um ótimo vínculo. Já a mãe que amamenta no peito enquanto fala no celular ou troca mensagens no MSN não está contribuindo para esse laço afetivo", diz. Para ela, a frustração das mulheresque não conseguem amamentar, em geral, não é levada em conta. "Uma mãe que sofrede uma doença infecciosa, por exemplo, já está emocionalmente debilitada. Alguns tratamentos são fortes e têm efeitos colaterais sérios. Essas mulheres sãocandidatas a depressão pós-parto. Acrescentar a isso a culpa por não poderamamentar o filho, fazê-las se sentir menos mães, só aumenta o problema.