sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A culpa é da culpa

Por Michelle Prazeres*

Nas últimas duas semanas, tudo aqui em casa mudou. O nono mês de vida do Miguel foi marcado por múltiplas “viradas” e transformações na vida da nossa família. Ele, claro, espelho de nós que é, fez parte de todas estas mudanças, e as refletiu em seu comportamento, especialmente relacionado ao sono e à alimentação.

Bebê tranqüilo, Mig nunca tinha nos dado trabalho em relação ao sono. Dormia bem, sempre mamou durante a madrugada, mas o considerado dentro da “média”. Nos últimos dias, o sono virou de cabeça pra baixo, e o menino passa a noite tirando cochilos de 5 minutos e acordando às vezes gritando, às vezes querendo brincar. Foram os primeiros dias – ou noites – em que de fato não dormimos depois que ele nasceu.

Bebê comilão, Mig não teve problemas com a introdução alimentar, aos 6 meses. Come de tudo, come bastante, em casa, na rua, no berçário, comigo, com o pai, com a vó, com outras cuidadoras... mas agora, não tem quem faça ele comer. As frutas ainda “passam”, mas a papinha salgada não desce. E quando desce, só vai se estiver muito, mas muita esmagadinha. Papa mesmo.

Bebê sociável, Mig nunca foi “um grude”. Claro, sempre curtiu nosso colo, mas sempre foi com outras pessoas “numa boa”, e nunca foi de reclamar. Baladeiro, topava tranqüilo as nossas saídas a lugares nem sempre “baby friendly”, apesar de nosso esforço em freqüentar espaços mais agradáveis para pequenos.

Angústia da separação

Eis que chegou o que costuma de chamar de fase da angústia da separação. E esta fase, para ele, ainda coincidiu com a chegada dos dentes, que – dizem – também costuma causar verdadeiros terremotos.

Algumas noites de sono perdidas, e cá estamos nós, meu marido e eu, tecendo mil reflexões sobre de quem ou do que é a culpa pelo fato de o Mig, bebê tão tranqüilo até então, estar deste jeito: sem dormir, sem comer e grudado em mim. Ora, a culpa é da vida, que muda mesmo, e ele precisa ir se adaptando aos limites e às coisas que nem sempre são do jeito que ele gostaria de fosse. São suas primeiras frustrações, seus primeiros “nãos”. Mas a culpa também é nossa? Dos pais?

A culpa é uma coisa esquisita. Dizem que nasce a mãe, nasce a culpa junto. Eu, desde grávida, repetia “não quero ser uma mãe culpada”. De fato, acho que não sou, assim, na totalidade, mas o fato é que a culpa vem. E se a gente assumir que ela está com a gente é mais fácil lidar com ela.
No começo, vem travestida de angústia. Especialmente se somos mães de primeira viagem, ela vem sob o formato de “não sei fazer, então, é melhor perguntar para outras pessoas do que ouvir a minha intuição”. E lá vem a culpa, porque “terceirizamos” o cuidado com nossos filhos ou porque, no outro extremo, não estamos sabendo fazer direito, porque não sabemos de nada. O que faz com o umbigo? E o choro? É assim mesmo? O tempo todo? É cólica? Dá o que? E estas perebas na pele? E o cocô mole? E a fralda? E o banho? E, e, e...

E a culpa é culpada por procurarmos soluções externas para resolver problemas cuja solução está em nós.

Bebês precisam de colo, carinho, comunicação e alimento.

Depois, o tempo vai passando e nós, mães, sentimos necessidade de sair um pouco de casa. Este tempo vai de cada uma. Para mim, foram dez dias. E aí, vamos fazer coisas para nós com os bebês. Pronto! Lá vem a culpa. Ah, mas esta seção de cinema não é pra ele. É pra mim. Esta aula de dança não é pra ele, é pra mim. Esta massagem não é pra ele, é pra mim. Mas, mas, mas...

A culpa é culpada pelo sacrifício. Nos sacrificamos, em lugar de pensar que, se fazemos bem para nós e estamos bem, o bebê estará bem também, e é preciso estar bem para cuidar bem.

Bebês não precisam de sacrifício. Precisam de entrega, sim. E as duas coisas são completamente diferentes, mas a culpa faz a gente confundir.

Aí, o tempo vai avançando, e, por conta de questões que não cabe aqui entrar no mérito, eis que chega o momento em que de fato precisamos nos separar (física e emocionalmente) dos nossos filhos pela primeira vez. Aí, a culpa não é travestida de nada. É culpa mesmo. Culpa pura! No meu caso, a separação teve que se dar por conta do trabalho. Já não é fácil. E com a culpa, ganha ainda mais peso! Agora que tenho algum tempo pra mim – ainda que seja majoritariamente dedicado ao trabalho –, nossa relação ganhou em qualidade, porque quando estou com ele, estou inteira e não mais tão cansada e irritada. Mas tem a tal da culpa. A culpa por estar deixando meu filho em um berçário, por ele estar passando por tudo isso, por ele estar triste, chorar feito louco toda vez que nos separamos , por ele não comer, por ele estar sentindo dor de dente, por, por, por... por culpa! Por um monte de coisas que fogem da nossa governabilidade, mas a culpa faz a gente achar que é responsabilidade nossa.

E a culpa é culpada por fragilizarmos nossos filhos e não deixarmos eles, de fato, conquistarem seus primeiros momentos de autonomia. É culpada por nos fragilizarmos e acharmos que não damos conta.

Bebês precisam que acreditemos na sua capacidade e na nossa capacidade (da família) de atravessar esta fase e bem.

Espantando a culpa!

E como lidar com a culpa? Obtive pistas estes dias.
Nosso pediatra (e guru!) Cacá, em consulta, nos provocou a pensar no que de fato queremos nesta fase. E a partir disso, mudar alguns hábitos relacionados à alimentação e ao sono do Miguel. Em um dado momento, ele nos disse: “A culpa é egoísta. Você para de olhar pro outro e passa a se olhar, a olhar para a culpa”. De fato, quando nos sentimos culpadas, deixamos de mirar os nossos filhos e miramos o que nos faz sentir menos culpadas. E aí é que começa o poço sem fundo.

Vivemos a culpa e ela vai nos engolindo.
Se olharmos nossos filhos, veremos que eles são nosso espelho, nossa alma, nossa sombra. Eles manifestam nossos desejos mais profundos. Neste caso, manifestam o nosso desejo de sermos necessárias.

Ser necessário é um desejo que todos nós temos. Todo ser humano quer ser precisado. E ser necessário é um tipo de poder. E, no caso de ser mãe, é um poder extremamente gratificante. Pois o resultado - ao exercê-lo – é, em geral, um filho “bem cuidado” de uma mãe super dedicada. Mas todo poder contem uma perversão. E a perversão do poder que temos de acalmar e acalentar, de fazer dormir e fazer comer os nossos filhos é a culpa.

Não sei se existe fórmula para lidar com ela. Mas arrisco dizer que a generosidade materna deve se expandir também para o campo das responsabilidades. E a responsabilidade pela condição – seja ela qual for – de um filho, é partilhada entre pai, mãe e filho.

Também arriscaria dizer que seria muito saudável se nunca agíssemos por culpa, mas sim, por vontades, desejos, necessidades... Agir por culpa pode gerar sacrifício, cobrança e frustração. Gera, com certeza, ruído no diálogo com nossos filhos. Eles não entendem bem a mensagem que passamos, porque nós também não temos clareza dela.

Na prática, não sei como agir.

Estamos experimentando um monte de coisas, testando possibilidades diante de nossa realidade e de nossos limites.

Mas o bom é que agora já sei o que pensar.

Vou pensar que a culpa não é de ninguém.

Que a responsabilidade é de todos.

Que a vida, a maternidade e a paternidade são o possível.

E que a culpa... ah... a culpa é da culpa!


* Michelle Prazeres é mãe do Miguel, 9 meses. É jornalista e idealizadora do blog http://empreendedorismomaterno.blogspot.com/