quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Dever de casa, da escola e da família

O que leva a classe média a matricular os filhos na rede pública? Principalmente, a busca por uma experiência de vida rica e com responsabilidades compartilhadas

Os filhos são nossos, mas também são do mundo. A forma de educá-los é decisão de cada família, mas, às vezes, esquecemos que parte da aprendizagem é compartilhada com a escola. Exagerando, podemos dizer que a sociedade inteira tem o que ensinar, incluindo os outros pais, os coleguinhas e os professores.

É estranho, portanto, que a gente nunca se pergunte: Quem é o dono do giz? E a lousa, é de quem? A quadra de esportes é de todos?

Há uma parte tímida da classe média disposta a pedir de volta o direito de matricular os filhos em uma escola pública de qualidade. Essa minoria não fica de braços cruzados e se sintoniza com as questões da comunidade escolar para que a formação dos filhos não dependa somente de verbas atrasadas ou projetos educacionais engavetados. Proativos, eles pretendem dar uma nova cara à instituição bordada por índices deficientes de qualidade. Tomam para si a responsabilidade de zelar pelo bem público e auxiliar a escola como coadjuvantes de destaques. Mas quem são esses pais? O que eles fazem pela escola pública?

Direito garantido
Na Escola Classe da 304 Norte, o barulho que se escuta pelos corredores não é dos alunos, que ainda aproveitam as últimas semanas de férias. Mas de pintores deslocando as escadas para alcançarem todos os espaços que precisam ser retocados antes do início das aulas. Lá fora, funcionários da Novacap retiram o capim da quadra de futebol e aparam os galhos que ameaçam cair no pátio. Enquanto a escola se prepara para mais um ano letivo, a empresária Angélica Brunacci, 33 anos, conversa com os funcionários, se dispõe a ajudar, faz sugestões sobre as mudanças e observa as melhorias do lugar onde a primogênita Sofia, 8 anos, estuda.

Angélica e o marido, o tecnólogo Diego Viegas, 31 anos, participam de cada decisão tomada pela escola. Postura que transforma o ensino público em algo bem diferente do quadro de descaso pintado por muitas instituições. Parte desse sucesso antecede a participação do casal e de outros pais cujos filhos estudam no ensino público. Pai de Angélica, o economista Gilson Duarte, 61 anos, por exemplo, já foi presidente da Associação de Pais e Mestres (APM), durante a década de 1980, onde a filha estudou e hoje a neta estuda. Para manter a qualidade pela qual os pais e tantos outros pioneiros batalharam para conquistar, Angélica segue os mesmos passos.

A empresária participa da APM porque acredita que uma atitude proativa dos pais seja peça fundamental para o êxito do ensino público. Além de participar de conselhos e reuniões da comunidade, Angélica e Diego também reservam algumas horas da semana para ir à escola e realizar atividades extras. Caso do laboratório de informática que Diego instalou e para o qual presta assistência. Angélica também ministrou uma oficina sobre segurança na internet. “Ninguém te cobra para ser participativo, mas se um pai domina a parte elétrica, ele vem ajudar da mesma forma que outro pai, serralheiro. A escola pública é assim: uma via de mão dupla”, diz Angélica.

Apesar de se juntar a outros pais de classe média cujos filhos estão matriculados na escola classe, a empresária desconhece a existência de uma rede organizada de pais em prol do ensino público. No entanto, Angélica observa que tal envolvimento nas atividades pedagógicas passa a ocorrer a partir do momento em que pai e mãe matriculam os filhos no ensino público e se tornam parte da comunidade escolar. “Acho que tudo parte do seguinte princípio: quando a classe média abandona o serviço público, ele fica caracterizado como ‘para pobre’. E não é. É um serviço pelo qual todos pagamos por meio de impostos”, defende.

Sofia, filha de Angélica e Diego, não vê distinções entre os coleguinhas, ainda que muitos experimentem uma realidade bem diferente da menina de classe média. “Andamos com ela de metrô, de ônibus e explicamos, à medida que nos questiona, como é a vida de algumas amigas da escola ou por que não é asfaltada a frente da casa da amiga. Queremos preparar nossas filhas para o mundo”, diz Diego

Outra diferença no dia a dia de Sofia, ressaltada pelos pais, é que ela não demanda brinquedos ou gadgets como outras crianças da mesma idade. O celular que ganhou dos pais só é usado quando a menina tem aula de ginástica acrobática no Centro Interescolar de Educação Física (Cief), também público. A mochila ou mesmo o estojo também não são aqueles “da moda”. Nem por isso, ela sente falta.

Tampouco Sofia sofreu qualquer tipo de bullying na escola por ser de classe média. Nem os pais foram questionados por outros de menor poder aquisitivo sobre a vaga que a menina ocupa numa escola pública, sendo que o casal de classe média teria condição financeira de matricular a menina numa particular. Para os pais de Sofia, a ideia de que estariam roubando a vaga de alguém que realmente precisa é consequência de um abandono do ensino público por parte da classe média. Para Angélica, o que houve foi um afastamento da classe média quanto às escolas públicas. “Mas ainda há pais que querem usufruir desse direito”, complementa.

Questão de formação
A servidora pública Mirian Benites Falkenberg, 46 anos, tem duas filhas matriculadas na Escola Classe da 304 Norte. Mãe de Ana, 7 anos, Helena, 9, e Fernando, 14, Mirian foi motivada pelo ideal de que o ensino público é para todos. “Aqui tenho a oportunidade de estar mais próxima da educação dos meus filhos”, diz.

Até encontrar uma escola de ensino fundamental de qualidade para os filhos, ela e o marido, o servidor público Roberto Guerrero Marques, 56 anos, tiveram que pesquisar muito. Buscaram referências, foram atrás de instituições do ensino público e particular ranqueados pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), mas, graças ao boca a boca, chegaram à Escola Classe da 304 Norte. O filho mais velho, Fernando, de 14 anos, no entanto, não faz mais parte do ensino público. O adolescente foi matriculado, recentemente, numa escola particular porque os pais não encontraram uma instituição de ensino médio e público que oferecesse ao filho as mesmas condições que outros meninos do ensino particular têm para concorrer a uma vaga na universidade pública.

Esse, inclusive, é dos motivos pelo qual Mirian sabe que nem tudo são flores na escola pública. “Existem muitos desafios, dificuldades, mas lutamos juntos com a escola”, pondera. A transição experimentada por Fernando provoca de início, estranheza. Mas o adolescente diz que tirou de letra as mudanças. Uma das razões, acreditam os pais, é a visão diferenciada de mundo que ele desenvolveu no ensino público.

A servidora dá crédito ao exercício da cidadania e de responsabilidade que Fernando apreendeu durante todo a fase do fundamental. Ex-aluna de escola pública no Rio Grande do Sul, bem como o marido em São Paulo, Mirian não se arrepende da educação que traçou para os filhos. “Quero que eles lutem por uma mudança na sociedade, por questões que realmente façam a diferença e que não tenham, simplesmente, uma carreira ou reduzam suas preocupações à própria questão financeira”, almeja.

Parceria
Associação de Pais e Mestres (APM): Tanto a APM quanto a Associação de Pais, Alunos e Mestres (Apam) e a Caixa Escolar são entidades legalmente constituídas pelas comunidades escolares sob a forma de pessoas jurídicas de direito privado sem fins econômicos. Elas têm como objetivo: auxiliar na administração escolar, participar de reuniões de planejamento e avaliação das atividades da instituição, captar recursos financeiros para prestar assistência suplementar e/ou emergencial à escola, receber, executar e prestar contas dos recursos financeiros obtidos por meio de repasses governamentais, como também os provenientes de doações ou eventos, além de promover e apoiar atividades sócios-culturais.

O caminho não só de flores
Para o casal Humberto e Beatriz Pellizzaro matricular os filhos na rede pública não era uma opção. No início dos anos 1980, tanto o engenheiro eletrônico quanto a jovem graduada em matemática enfrentavam as consequências de um estilo de vida despojado de bens materiais. Trabalhavam duro na pequena fazenda que, mais tarde, daria lugar à loja de produtos naturais que ainda mantêm. E tinham uma escadinha em expansão: Kimie, hoje com 31 anos, Keiko, 30, e Marcos, 28. Deixaram o campo e, em Brasília, geraram Yolie, 25, e André, 20.

Beatriz, 56 anos, postergou até onde foi possível o momento de matriculá-los na escola. “Optei por sair do emprego convencional e trabalhar em casa justamente para isso: para acompanhar a vida deles. Acho que, nessa primeira fase da infância, é importante brincar também. Então a obrigação da escola podia vir um pouquinho depois”, explica. Assim, os pequenos ingressaram no sistema por volta dos 7 anos. Começava aí uma história impressionante, na qual a família inteira se doou em nome de uma formação íntegra e sólida.

Ao longo do caminho, o realismo foi de grande valia. “O ensino público, com algumas exceções, tem suas deficiências. Então, desde cedo, a gente os ensinou a não se limitar às limitações da rede. Então, eles procuraram sempre estudar por fora. Alguns conseguiram bolsas, e todos trabalharam para ajudar em casa. O sistema deixa meio à míngua, mas também tem suas vantagens. Eles ficaram mais autossuficientes”, diz

O casal é ciente de que a opção de vida deles abarcava o destino dos meninos. “Se você puder conversar com os filhos sobre as carências e oportunidades, a experiência é bastante rica e se vive mais harmoniosamente”, acredita Beatriz. “A escola pública é um retrato mais real da sociedade”, conclui Pellizzaro. E os pais marcaram presença. Naquela época, por exemplo, Humberto curtia acampar e fazer trilhas. Nessas ocasiões, sempre estendeu o convite às demais turmas. Comunicava à direção e, aqueles que os pais autorizassem podiam entrar na aventura.

“Nem tudo foram flores”, ressalta Beatriz.

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2012/01/29/interna_revista_correio,287578/dever-de-casa-da-escola-e-da-familia.shtml