segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Os normais e os malucos beleza

Foto: matéria

Há alguns dias, postei um texto aqui com o título auto-explicativo de "Hiperativa é o cacete! Meu nome é Zé Pequeno", onde contei um "causo" desses que vivo que me causam indignação. Aconselho que você leia, vai se divertir um bocado com a desgraça alheia. Naquele texto, eu digo que estava lendo muita coisa sobre medicalização para um seminário e que pensava numa postagem sobre isso.
 
Então esse texto aqui é justamente sobre isso, sobre a medicallização da vida. Questão que é, sem dúvida alguma, um dos temas que mais me interessam atualmente e que está diretamente relacionado à questão de respeito ao parto e nascimento e, também, à questão da saúde mental, as duas áreas que me fascinam.

Partindo do começo: o que é medicalização? 
Medicalização não é apenas esse péssimo hábito atual de usar medicamento para tudo e contra todos. Isso é medicamentalização, que também está inserido no contexto da medicalização, mas não somente.
 
Em termos muito simples, medicalização é tratar aquilo que é absolutamente normal na vida de um indivíduo como um problema de saúde e, consequentemente, como assunto de domínio médico.
 
Há uma quantidade imensa de exemplos que podem ser trazidos à tona.
Se uma pessoa está triste, diz-se que está com depressão. Se está alegre, está maníaca. Se varia entre os dois estados, está bipolar. Se tem vergonha de falar em público, tem fobia social. Se comeu muito, está com compulsão alimentar. Se está sem fome, virou anoréxico. Lavou 3 vezes a mão, então tem TOC. Isso apenas pra citar alguns poucos exemplos. 

O grave da questão da medicalização é que comportamentos rotineiros considerados indesejados passaram a ser classificados como problemas médicos. E, assim, tornaram-se passíveis de controle por meio de medicação. E, o que é pior, os indivíduos passaram a ser "normalizados", ou seja, comparados com uma pretensa "normalidade" que deveria existir.

O que é o normal? Normal seria aquilo que está na média, em termos de frequência numérica.

Mas quem disse que o que é frequente é normal? Cai-se, portanto, na questão discutida na postagem anterior, "
Quando o comum não é normal", em que falo sobre a violência obstétrica. Nem sempre aquilo que é comum pode ser considerado normal...

E, assim, vivemos em um mundo onde as pessoas buscam, freneticamente, ser normais, um estado fictício e ilusório. Milhares de pessoas no mundo buscando a normalidade... que nem sequer existe.
 
Com a medicalização tão comum das vidas, o modo de vida das pessoas foi apropriado pela ciência médica, que passou a interferir na construção dos conceitos, nas "regras" de higiene, nos costumes, nos comportamentos. E à medida em que a ciência médica se apropria da vida e dos corpos dos indivíduos, dizendo o que é o certo e o errado e orientando o indivíduo ao que ele DEVE fazer, diminui-se a autonomia da pessoa com relação ao seu próprio corpo, a aliena, desvaloriza e condena seu próprio estilo de vida e seus valores. As experiências humanas passam a ser vistas como problemas. Todo mundo deve se comportar da mesma maneira, em série.


Parei pra pensar nos aspectos da nossa vida atual que sofrem influência medicalizante direta. E tomei um grande susto. Não há mais aspectos isentos disso. Consegui fazer uma lista, que começa antes mesmo da vida começar, e que termina com o fim dela. E é essa lista que quero apresentar aqui, chamando a todos para a leitura e reflexão sobre cada um desses itens. Nós vivemos, hoje:

a medicalização da concepção (com pessoas comprando kits de previsão da ovulação; monitoramento da temperatura corporal com termômetros cada vez mais sensíveis; paranóia dos check ups, das vitaminas, de diversos fármacos; gente dizendo para consultar um ginecologista que te possa orientar sobre as melhores posições sexuais para engravidar; um arsenal de procedimentos que tornam a vida tensa, sem graça, sem charme, mecânica e paranóica - o que é totalmente paradoxal para quem está tentando engravidar, que precisa estar tranquilo e relaxado)

a medicalização da gestação (tenha um ou dois obstetras de confiança, tome vitaminas, reforce a quantidade de hormônios, faça inúmeras ultrassonografias, consulte um nutricionista, marque um psiquiatra, use antiácidos, antiespasmódicos, antieméticos, procure com antecedência um pediatra, marque sua cesárea, cuidado com diabetes, hipertensão, pré-eclâmpsia - uma enxurrada de orientações que geram na gestante a falsa sensação de que o que ela está vivendo não é natural, não é normal e, sim, é arriscado, é uma quase-doença, digamos assim...)

a medicalização do parto e puerpério (lugar de parto é no hospital, ou seja, o parto deixou de ser algo natural para ser algo arriscado; ao invés de se pensar no parto como sendo vida, se pensa, antes, no parto como algo que pode levar à morte; os procedimentos envolvidos no parto remetem, todos, a uma concepção medicalizada; a ocitocina de praxe - o famoso "sorinho"; a anestesia de rotina; a episiotomia de rotina; a presença de diferentes tipos de médicos; a noção equivocada de que quem faz o parto é o médico, como se o parto fosse algo extra-mulher, que ela não teria capacidade para fazer sozinha; entre tantos outros aspectos)

da amamentação (amamentação também deixou de ser algo natural; muitas mulheres têm saído das maternidades com a prescrição de NAN ou outros leites artificiais sem ao menos serem orientadas a amamentar; amamentação virou caso médico, com médicos dizendo quando se deve desmamar uma criança ou quais os melhores horários para se amamentar, decisões que dizem respeito somente à mãe e à criança e sobre as quais nenhum médico tem direito ou conhecimento de causa para opinar, uma vez que cada dupla mãe-filho é absolutamente singular)

da alimentação (consulte um nutricionista, marque uma consulta com seu nutrólogo e outros especialistas, tome vitaminas para complementar; os transtornos alimentares, o muito ou pouco apetite e os estimulantes ou inibidores)

da educação (como se todas as pessoas fossem dotadas das mesmas habilidades de aprendizagem, quem apresenta diferenças é rapidamente classificado como portador de algum transtorno, que vai desde o tão pop transtorno de hiperatividade e déficit de atenção até a dislexia, passando por ínúmeras dificuldades de aprendizagem, nunca considerando as diferenças individuais naturais)

dos afetos (vide exemplos que mencionei no início do texto, quando tristeza é depressão, alegria é mania e a alternância é bipolar; o amor agora pode ser patológico; o vínculo pode ser interpretado como sendo causado apenas por um hormônio; tristeza não pode haver; alegria demais é patológica)

das personalidades (não existem mais "pessoas diferentes", existem "distúrbios de personalidade"; os fóbicos sociais, os impulsivos, os hiperativos, os apáticos, os maníacos)

da beleza (a ninguém mais se permite estar fora do peso, ou o surgimento de algumas rugas; procedimentos invasivos são feitos; seringas são usadas, agulhas são inseridas, toxinas injetadas, e se torna praticamente questão de saúde não querer seguir a onda esmagadora em busca da beleza)

da sociabilidade (não se pode mais ser tímido, há que se medicar para facilitar as relações sociais; não se pode ser muito extrovertido, essa pessoa será rapidamente taxada de bipolar, esquizo ou maníaca; ser mais ou menos sociável deixou de ser uma característica de personalidade, se tornou problema médico)

do trabalho (LER's - lesões por esforços repetitivos -, síndromes, como a de Bornout, depressões; quem trabalha pouco está deprimido; quem trabalha muito é workaholic; nada mais é normal também no âmbito da relações de trabalho e tudo virou caso de perícia médica)

das funções vegetativas (se você sua demais, precisa de uma cirurgia corretiva; se sente muita sede, está com alterações orgânicas; se vai ao banheiro dia sim, dia não, sofre de constipação, independentemente de suas características orgânicas individuais, entre outros inúmeros exemplos; quem não se comporta como livro-texto, está doente ou com alguma alteração metabólica)

da longevidade (é praticamente considerado crime hoje o fato de você se permitir envelhecer naturalmente; as pessoas estão sempre em busca da pílula da imortalidade; inúmeros medicamentos; a obrigatoriedade da atividade física como lei para viver mais; tudo para prolongar a sua vida, ainda que não se pense tanto assim em sua qualidade)


Para quem é mãe, existe ainda a questão da medicalização da maternidade, mas sobre isso quero falar especificamente em outro momento, embora eu cite um exemplo logo abaixo.
A questão é: ao aceitar essa medicalização, nos tornamos ordinários. Ordinários no sentido de comum, habitual, vulgar, frequente, que não ultrapassa o nível comum. E, creia, não é bom ser assim...


Minha filha Clara, que tem hoje 1 ano e 4 meses, voltou a andar sozinha na semana passada. Ela, que aprendeu a andar há mais de 2 meses, havia parado quando nos mudamos de casa e voltado a engatinhar. Talvez por ter estranhado a mudança, preferiu segurar a onda e observar o ambiente um pouquinho mais. Agora, ela ganhou o mundo! Passa o dia indo de lá pra cá e de cá pra lá. Mas até isso acontecer, tive que vencer toda essa força que nos leva a ver tudo como problema, ignorando que todos "temos nosso próprio tempo", como dizia aquela música, e tentando "normalizar" todo mundo.


Muitas pessoas me pressionaram, sugerindo sutilmente que talvez fosse bom levá-la ao médico para ver se havia realmente "algum problema" com ela, já que "o normal" é que as crianças comecem a andar antes desse tempo. E eu, que sou bem resolvida quanto a essas coisas, caí na armadilha: peguei-me inúmeros dias questionando e levantando a possibilidade de que algo estivesse errado, a ponto de chegar a marcar um médico (sim, minha culpa, minha máxima culpa). Felizmente, um dia caí em mim, recuperei a sanidade, vi o ridículo da situação, cancelei o médico, mandei tudo e todos às favas e deixei minha filha e sua vontade ou não de caminhar em paz. Se ela quisesse começar a caminhar só com 2 anos, assim seria, e eu ia curtir mais um tempão o bundão dela engatinhando pela casa como uma bonequinha de corda.


Chegou ao cúmulo da seguinte situação. Num final de tarde, eu a levei para tomar um banhinho de mar aqui pertinho de casa. Peguei na mãozinha dela e ela foi caminhando comigo até a água. Nisso, chegou uma outra mãe com sua filhinha de 11 meses, toda caminhante. E disparou contra nós:

- Nossa, mas com 1 ano e 4 meses ela ainda não anda sozinha?! Mas tá muito tarde. Será que ela está com algum problema?

- Não, companheira, não está com problema não. É o tempo dela. Cada bebê reage de uma maneira aos estímulos.
- Ah não, tem alguma coisa errada aí.

Respirei fundo e calei-me.

Nisso, Clara, feliz por estar na água, começa a dizer: Mamãe, mamãe, mamãe.

E a pitaqueira:

- Nossa! Ela já fala?

- Sim, ela já fala algumas coisinhas.

- Ai, mas não é cedo demais?!

Aí deu pra mim.

- Querida, que livro você anda lendo?

- Ah, nenhum, eu não gosto de ler.

- Não gosta?! Será que você não gosta mesmo ou está com algum problema? Eu, se fosse você, procurava uma orientação, vai que você está com dislexia, né?

E ela, assustada:

- Ai, será?!

- Não. Claro que não. Você apenas prefere fazer outras coisas a ler. Cada um é de um jeito, cada um tem seu tempo, não dá pra gente generalizar.

- Ah... entendi. É, deixa a sua filha, logo ela vai caminhar. Capaz que você leve ela no médico e ele arrume mesmo um problema. Que bom que ela ainda passeia de mão dada com você, a minha não quer mais, só quer andar sozinha...


Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual...

... eu sigo assim, meio maluco beleza.

Eu prefiro ser livre a ser normal.



Fonte: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2011/12/os-normais-e-os-malucos-beleza.html