quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Desenvolvimento do Ser Humano na Primeira Infância

A Antroposofia é uma corrente filosófica fundada por Rudolf Steiner, que tem uma abordagem holística na leitura espiritual, física e social do ser humano. Uma ciência espiritual, conforme seus estudiosos.

Steiner definiu a antroposofia como "um caminho de conhecimento para guiar o espiritual do ser humano ao espiritual do universo." 

Para os amantes da puericultura, a antroposofia tem contribuições incontestes. Veja um resumo da abordagem de Steiner para os pequenos, de acordo com a Biblioteca Virtual da Antroposofia



Primeiro Setênio – 0 a 7 anos

É na primeira infância, mais precisamente durante os primeiros 7 anos, que as forças da individualidade estão localizadas na cabeça, e a tarefa neste período, é crescer, desenvolver os órgãos físicos que estão sendo formados, "independizar" o pólo superior do corpo, do pensar.

Com o nascimento, tem início o trabalho da individualidade, daquele ser cósmico que começará uma vida terrestre de transformação do invólucro corpóreo recebido dos pais, apto às suas necessidades. Portanto, neste período, a individualidade se ocupará em se apropriar do corpo herdado, moldando-o e reestruturando-o conforme suas peculiaridades interiores.

A criança, por assim dizer, reforma, refina seu instrumento físico, que é a corporalidade. Essa transmutação significa, aos poucos, eliminação das substâncias herdadas, desde as células mais microscópicas, que se tornam cada vez mais individualizadas, até os dentes, que são as mais duras do corpo, quando no final dessa etapa, a criança perde a dentição de leite, substituindo-a pela permanente, que é aquela que construiu a partir de sua interioridade.

Olhando, para os nossos sentidos, que, com exceção do tato que permeia todo o corpo, estão localizados na cabeça, podemos ter uma idéia dos aspectos que devem ser cuidados neste período inicial, para que a criança possa gostar de estar na Terra, dentro de seu próprio corpo.

Assim, para a construção do corpo físico de forma equilibrada, a criança deveria ter vivências permeadas por situações e circunstâncias que a levassem a perceber que o mundo é bom.

À essa criança, deveriam ser providas oportunidades de movimento livre no espaço, na medida em que vai se apropriando dele ao longo de seu desenvolvimento, desde possibilitar o engatinhar quando é bebê, até trepar em árvores e correr no campo quando é maior.

É por experimentação que a criança aprende, por tentativa e erro, e pelo princípio da imitação. O que não queremos que ela faça, não deveríamos também fazer, pois ela seguramente imitará gestos, fala, atitude dos adultos ao seu redor.

Rapidamente as faculdades humanas vão sendo adquiridas, quando, aos 3 anos a criança já conquistou o espaço físico com o andar, o espaço social com o falar, e o espaço espiritual, com o pensar.


Em síntese, neste primeiro setênio os princípios são :

• imitação

• bondade

• órgãos dos sentidos

• desenvolvimento do pensar

• processo de individuação física

Leia o artigo completo - que trata dos próximos oito setênios - no site Antroposofy

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Por que não querem dormir sozinhas?

Trecho do Livro "Besame Mucho" de Carlos Gonzalez

[...] essa espécie de terror que aflige as crianças quando acordam na noite ou na solidão.
ALEXANDRE DUMAS, Vinte anos depois

Onde dormiam os bebês há 100.000 anos? Não havia casas, não havia berços, não havia roupa. Sem dúvida dormiam junto à mãe ou sobre ela, em um leito improvisado de folhagem. O pai não devia dormir muito longe, e a tribo estava a apenas alguns metros de distância. Só assim podiam sobreviver durante o sono, o momento mais vulnerável da sua jornada. Uma lembrança daqueles tempos é o costume dos esposos de dormir juntos e o mal estar que nós, adultos, costumamos sentir quando uma viagem nos obriga a dormir separados do nosso parceiro. Muitas mães, se o marido dorme fora, "deixam" que os filhos venham para a sua cama, e nem sempre é fácil dizer qual dos dois encontra mais consolo na companhia.

Pode-se imaginar um bebê sozinho, sem roupas, dormindo no chão ao ar livre, a cinco ou dez metros da mãe durante seis ou oito horas seguidas? Ele não teria sobrevivido. Tinha que existir um mecanismo para que, também de noite, o bebê estivesse em contato contínuo com sua mãe, e novamente o mecanismo é duplo: a mãe deseja estar com o filho (sim, apesar de todos os tabus contra isso, muitas mães ainda o desejam) e o bebê resiste violentamente a dormir sozinha.

Dormir sozinho! O grande objetivo da puericultura do século XX! Como comentamos, um bebê a quem a mãe pudesse deixar sozinho, acordado, no chão, sem reclamar imediatamente, mas que ainda por cima dormisse, dificilmente teria sobrevivido durante mais do que algumas horas. Se alguma vez houve bebês assim, eles foram extintos a milhares de anos (Bom, não todos. Falam de bebês que dormem a noite inteira, espontânea e voluntariamente. Se o seu é um desses raros bebês, não se assuste, também é normal). Nossos filhos estão geneticamente preparados para dormir em companhia.

Para um animal, o sono é um momento de perigo. Os nossos genes nos impulsionam a mantermo-nos acordados quando nos sentimos ameaçados e a deixar-nos levar pelo sono somente quando nos sentimos seguros. Sentimo-nos ameaçados num lugar desconhecido, e muita gente têm dificuldade em dormir em hotéis porque "estranham a cama". Temos dificuldade de dormir na ausência do nosso companheiro ou na presença de desconhecidos.

Você tinha que trocar de trens numa cidade distante e perdeu a última conexão. São duas da manhã, está tudo fechado e você tem que esperar na estação pelo trem das seis. Imagine agora várias situações possíveis: a) Você está completamente sozinha na sala de espera; b) Você viaja sozinha, mas na sala há uma dezena de pessoas, duas famílias completas, algumas senhoras idosas, um grupo de escoteiros; c) na sala só estão você e cinco jovens de cabeça raspada meio bêbados; d) você viaja na companhia do seu marido e de outros casais amigos.


Acha que adormeceria do mesmo modo em cada uma das circunstâncias?





Estranhos na noite

Onde quer que ela estivesse, ALI era o Éden. 
MARK TWAIN, O diário de Eva

Gabriel, de dezoito meses, "é ruim para dormir". Volta e meia chama a mãe, Maria: quer ouvir uma história, quer água, tem dodói... Cada noite se converte em uma tortura para toda a família. "Ele está te fazendo de boba - todos dizem - você devia deixá-lo chorar, não faz mal nenhum". Hoje, Maria e Gabriel foram visitar os avós no seu vilarejo perdido. O papai está trabalhando e não pode ir. Eles têm de trocar de ônibus numa pequena cidade. Mas o ônibus que vem da capital atrasou várias horas, e Maria e seu filho são os únicos que descem na solitária rodoviária, à uma e meia da manhã. O ônibus que vai até o vilarejo dos avós não até as sete e meia da manhã. Mãe e filho estão sozinhos na sala de espera mal iluminada. A estação de ônibus está nos arredores da cidade, separada das primeiras ruas habitadas por algumas árvores e por uma zona de fábricas e armazéns. Maria não se atreve a ir até o vilarejo andando. Ao lado da estação há um posto de gasolina. Ela pedirá ao encarregado que lhe chame um táxi, deve haver um hotel nessa cidadezinha... Será que ela tem dinheiro suficiente? Ela descobre apavorada que tem dinheiro suficiente apenas para o ônibus e que se esqueceu de pegar o cartão de crédito. Bom, afina são apenas cinco horas, será melhor esperar aqui. A luz acesa no posto de gasolina lhe dá certa segurança. Ela quase preferia esperar no posto, mas está do lado de fora.

De vez em quando passa um carro rápido ou ouve-se das fábricas, um latido de um cachorro. Perto das três da manhã, chegam cinco motoristas com jaquetas de couro, param entre a rodoviária e o posto de gasolina e começam a beber cerveja, gritando e brigando.

Às vezes um deles se aproxima da rodoviária ostensivamente e urina numa árvore, enquanto os outros riem e tiram sarro ("deixa de ser burro, José, você não vê que tem uma senhora? ,  "Não lolhe senhora, que não vale à pena, o dele é muito pequeno!"). E isso dura mais de uma hora e meia.

Maria, é claro, passou as lentas horas acordada, no assento mais perto da porta, agarrada ao filho e à bolsa. Gabriel, por outro lado, dormiu ao colo dela direto, sem acordar. Quem té que é "ruim para dormir"? No colo da mãe, numa cidade remota, rodeado por desconhecidos hostis, Gabriel se sentiu mais seguro do que em sua própria casa, no seu próprio quarto, no seu próprio berço. Para uma criança desta idade, a Mamãe é a Super Mamãe, a Protetora Invencível. Esse colo é o seu lar, sua pátria, seu paraíso. Não é maravilhoso, mamãe, sentir-se assim?


Na noite dos tempos

E se tem filhos, quando vivam, não remove nada nas suas entranhas?
VICTOR HUGO, Corcunda de Notre Dame

Naquela tribo, há 100.000 anos, duas mães foram dormir com os filhos. Não sabemos exatamente como elas faziam, mas sabemos o que fazem os chimpanzés atualmente : ao cair da noite, cada adulto prepara um leito macio com folhas e ramos e vai dormir. Os chimpanzés não tem camas de casal, o macho e a fêmea dormem separados (embora não muito distantes, é claro; todos na tribo, dormem perto uns dos outros). E mãe e  filho dormem juntos até que o filho tenha uns cinco anos.

No meio da noite aquelas duas mulheres primitivas acordaram por motivos que desconhecemos, começaram a caminhar, deixando seus filhos no chão. Uma das crianças era daquelas que acordam a cada hora e meia; a outra era dos que dormiam a noite toda, sem acordar. Qual deles você acha que não acordou nunca mais? Ou melhor, os dois acordaram ao mesmo tempo, mas um começou a chorar imediatamente enquanto o outro não começou a chorar até umas três horas depois, quando sentiu fome. Qual morreu de fome? 

Um começou a chorar imediatamente, e o outro ficou calado até que a aparição de uma hiena o assustou. Qual foi comido pela hiena? Um, quando começava a chorar, não parava até que sua mãe voltasse e o tranquilizasse: ele poderia chorar por meia hora, uma hora, todo o tempo necessário, até o esgotamento. O outra, pelo contrário, chorava por alguns minutos e, se não vinha ninguém, voltava a dormir. Qual dos dois dormiu para não acordar nunca mais?

Adivinhou: os nossos filhos estão geneticamente preparados para acordar periodicamente. Os nossos filhos herdaram os genes dos sobreviventes, dos vencedores da dura luta pela vida.

Não dormem a noite toda sem acordar, mas tem, assim como os adultos, vários ciclos de sono ao longo da noite. A duração de cada ciclo é variável, entre apenas vinte minutos e um pouco mais de duas horas; a duração média é de uma hora e meia para o adulto, mas apenas de uma hora para o bebê. Entre cada ciclo, passamos por uma fase de "despertar parcial", que é facilmente convertida em despertar completo.

Até mesmo os especialistas em "ensinar as crianças a dormir" reconhecem esse fato: o objetivo de seus métodos não é conseguir que a criança não acorde, isso é impossível. O que querem é que, quando acordar, em vez de chamar os pais, fique calada até dormir de novo.

As crianças "estão de guarda" para ter certeza de que a mãe não foi embora. Se o bebê sente o cheiro de sua mãe, pode toca-la, ouvir sua respiração, talvez mamar, volta a dormir imediatamente. Em muitas das mamadas, nem a mãe nem o filho despertam completamente. Mas, se a mãe não está, a criança acorda completamente e começa a chorar. Quanto mais tempo tiver chorado até que sua mãe o acuda, mais nervoso ficará e mais difícil será para consola-lo.


Um planeta, dois mundos

Mas - explode indignado - aqui em Milão essas crianças tão pequenas não dormem com seus pais? Quem cuida delas, então? 
JOSÉ LUIZ SAMPEDRO, O sorriso etrusco

Em outras culturas a prática da cama compartilhada é praticamente universal (e, consequentemente, os problemas de sono durante a infância, são praticamente desconhecidos). A psicóloga Gilda Morelli e seus colaboradores estudaram detalhadamente o comportamento e as opiniões de um grupo de 14 mães guatemaltecas de etnia maia e as compararam com as de 18 mães norte-americanas brancas de classe média.

Todas as crianças maias (entre os dois e os vinte e dois meses) dormiam na cama com a mãe, e oito delas dormiam também com o pai. Outros três pais dormiam no mesmo quarto,  em outra cama (dois deles com outro filho mais velho) e em três casos o pai estava ausente. Em dez casos havia outro irmão dormindo no mesmo quarto, quatro deles na mesma cama. As outras quatro crianças não dormiam com os irmãos porque eram filhos únicos.

As crianças maias ficavam com a mãe e mamavam em livre demanda até os dois ou três anos, pouco antes do nascimento de um irmãozinho. As mães normalmente não notavam se a criança mamava a noite, porque não acordavam e achavam que o tema não tinha importância (por outro lado, 17 das 18 mães norte-americanas tinham de acordar para alimentar o filho, a maioria durante seis meses, e as 17 disseram que as mamadas noturnas eram um incômodo).

Entre os maias não existia uma rotina para fazer as crianças dormirem. Sete dormiam com os pais e as outras dormiam no colo de alguém. As 10 que ainda mamavam no peito, dormiam no peito. Não liam histórias para dormir nem davam banho nos bebês antes de deitar. Somente uma das crianças tinha uma boneca com a qual dormia; era a única que não tinha dormido com a mãe desde o nascimento e que tinha passado alguns meses dormindo em um berço no mesmo quarto, para depois voltar para a cama materna.

As mães maias não concebiam que as crianças pudessem dormir de outra maneira. Quando explicaram que as crianças norte-americanas dormem em um quarto separado, demostravam assombro, desaprovação e compaixão. Uma exclamou:"Mas alguém fica com eles, não é?" A cama compartilhada não é uma consequência da pobreza ou da falta de quartos, mas é considerada fundamental para a educação correta da criança. As mães explicavam, por exemplo, que, para dizer a uma criança de 13 meses que ela não podia tocar em alguma coisa, bastava dizer-lhe "Não toque nisso, não é bom, pode fazer dodói" e a criança obedecia. Ao explicar a elas que as crianças norte-americanas dessa idade não compreendiam proibições ou que faziam mesmo o contrário, uma mãe maia sugeriu que esse comportamento era consequência de tê-las separado dos pais durante a noite.

É apaixonante comparar como se criam as crianças em diferentes culturas. Uma antropóloga norte-americana, Meredith Small, escreveu um livro imprescindível sobre este tema intitulado Our babies, ourselves. 


Todas as Ilustrações desse texto são da artista sueca Majali.
Fonte das imagens: Etsy

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O Começo da Vida

"- Professor Einstein, se você tivesse uma pergunta apenas para fazer sobre o Universo, qual seria?  

- O universo é bom?" 




Esse é o trecho que abre a série de trailers que estão instigando a curiosidade da comunidade da puericultura. A Maria Farinha, produtora dos aclamados documentários Muito Além do Peso e Tarja Branca está trabalhando em um projeto de suma importância: O Começo da Vida, que tem previsão de estréia para março de 2016.

O documentário está sendo filmado por todo o mundo, e começou com o mote dos 1000 primeiros dias. Os mil dias do bebê são um conceito relativamente novo - e infelizmente já apropriados pela indústria de alimentos artificiais, portanto vale à pena falar um pouco sobre ele para que sua relevância fique clara para as famílias.

Os mil dias compreendem o mês anterior à gestação, os nove meses de gravidez até os dois anos da criança. Estudos recentes, mostram que do ponto de vista da saúde emocional e física, todo o entorno contribui para a formação plena desse ser. Ao contrário do que se acreditava, por exemplo no caso da obesidade, que os problemas começavam a ser formados na idade adulta, hoje sabe-se, através de estudos, que a gênese de muitas condições psíquicas e fisiológicas está exatamente nessa tão importante fase de desenvolvimento. 

"A possibilidade de fazer uma criança que nasce com boa saúde crescer desse modo e assim permanecer por décadas exige a adoção de medidas aparentemente simples: oferecer proteção e aconchego ao bebê e alimentá-lo adequadamente." 

O que parece ser tarefa simples e um excelente mote de pesquisa documental, transformou-se em um imenso mar de informações, histórias e depoimentos de profissionais ao redor do mundo. E os mil dias extrapolaram para o Começo da Vida, nome oficial do documentário. Assistam os traillers abaixo!

O mundo tem sido amigável, bom, generoso, gentil, amoroso, carinhoso, cuidadoso com nossos bebês?




terça-feira, 4 de agosto de 2015

Quando a Amamentação "não dá certo"

Em plena Semana Mundial da Amamentação vemos pelos diversos canais de informação para mães e pais tudo sobre a importância do Leite Materno.

Para engrossar o coro em não mais que um parágrafo, é evidente que o leite da própria mãe é o melhor alimento para o bebê. Na verdade, o leite materno é o único alimento infantil que existe, e tem garantido a sobrevivência das espécies mamíferas nos últimos milênios de evolução. Ele contém tudo o que o bebê precisa, em termos de nutrição e proteção. De modo que os esforços da informação para o aleitamento materno estão há muitos anos focados em desmistificar ideias ultrapassadas como "leite fraco", "leite aguado", "não sustenta" e outras mitologias criadas pela indústria, que sempre quis esse filão crescente e eterno do mercado: bebês e crianças.

Mas hoje quero discutir uma outra questão sobre amamentação: às vezes, ela "não dá certo". E as aspas nessa frase são propositais e importantes.

Caminhando pelas redes na Smam, veremos milhares de relatos de sucesso. A campanha desse ano, inclusive, aborda uma etapa ainda mais distante dos desafios iniciais do processo de amamentação: se a mulher já venceu a batalha de fazer "dar certo" ela agora tem que se preocupar em como seguir amamentando, mesmo voltando a trabalhar. Um lugar de debate e um ponto de ação importantíssimos, afinal do ponto de vista da saúde pública, os benefícios da amamentação estão para além dos quatro parcos meses de licença maternidade. A própria OMS recomenda dois anos ou mais. E a Smam vem para trazer esse olhar, para a mulher que já venceu os desafios iniciais e precisa agora conciliar a vida toda com a amamentação. Tarefa hercúlea.



Mas na mesma medida, há tantos outros relatos de insucesso. Muitas pessoas tem se manifestado com afeto em acolhimento às mães que não amamentaram. E uma escuta ativa dos casos de insucesso vai nos revelando os mesmos motivos que os especialistas na área e os ativistas pela amamentação apontam com insistência. Quando a amamentação não dá certo, pode ter certeza que houve:

Falta de profissionais especializados: sabemos que a grande maioria dos profissionais de saúde que atendem mães e bebês no pós parto imediato simplesmente não é especialista em amamentação. Desde as orientações erradas sobre a pega até recomendações obsoletas como as mamadas com tempo cronometrado ou em horários específicos, vemos relatos de práticas ruins por parte desses profissionais, que certamente influenciaram no insucesso dos processos de lactância. Sabemos da delicadeza e interdependência dos fatores quando o assunto é amamentação. Uma orientação errada, mesmo que na maior boa vontade, pode acarretar consequências cada dia mais desastrosas, como é o caso da pega. Essa é uma realidade dura, mas que vem sendo encarada de frente pelos projetos de apoio à amamentação na criação e implementação de programas de formação profissional.

Excesso de oferta de produtos substitutos ao leite materno: "o médico já deixou o leite artificial prescrito na maternidade, caso precisasse" é uma frase usada em mais casos do que podemos imaginar. Ela está de fato ligada à primeira razão dessa lista. Os profissionais, ou por despreparo, ou por terem-se deixado levar pelas informações de mercado da indústria, fazem prescrições de leite artificial muitas vezes de forma irresponsável. "Se precisar" é uma grande armadilha. Uma mulher recém parida, muitas vezes em um atendimento nada humano, com milhares de hormônios em ebulição e todas as questões emocionais que envolvem um pós parto imediato não pode ter uma prescrição de complemento assim genérica. O mesmo vale para o apelo à chupeta "só para acalmar o bebê", ou o uso de bicos de silicone "para ele pegar melhor". Esses produtos são todos causas reais de desmame em bebês. 

Vigilância Sanitária em fiscalização da Norma Brasileira que regulamenta o marketing de produtos que oferecem riscos à amamentação


Desconhecimento da prática da amamentação enquanto cultura: muitas mulheres contam que sucumbiram ao processo porque os bebês não dormiam, ou mamavam toda hora. Narram estados de esgotamento e aflição, um desejo de retornar à vida "como era antes". Estando muito desconectadas da amamentação enquanto cultura, nos assustamos de fato com o nível de dedicação que ela exige. E muitas vezes somos cobradas para "retomar" o papel que exercíamos antes dos filhos. Despreparadas, aceitamos. Isso é bastante compreensível uma vez que a transmissão da cultura da amamentação - de avó para neta, de mãe para filha, de vizinha para amiga - está interrompida ha algumas décadas. Poucas de nós, fomos, inclusive, amamentadas. Não temos sequer memória celular do processo. 

Mitologias: existe um sem fim de justificativas para o fim dos processos de amamentação. Muitos e muitos deles são carregados de mitos. Mitos apenas. Como por exemplo "ninguém na minha família produz leite" ou o mais famoso de todos "meu leite era fraco". Nas minhas escutas dos casos em que a amamentação não deu certo, cheguei a ouvir gente dizendo que parou de amamentar porque o bebê soprou dentro do peito, ele se encheu de ar e o leite secou. Precisamos de muita lucidez e conexão com nossos corpos, resgate dos processos femininos e paciência para desmistificar essas fantasias.



Falta de apoio social: É nessa temática que se encontra a campanha da Smam desse ano. O apoio social, tanto em forma de políticas públicas para o coletivo, como um simples copo de água vindo de alguém que zela pelo bem estar da mulher e do bebê em fase de amamentação é um ponto crítico também nos processos de desmame precoce ou insucesso completo da amamentação. Os relatos são categóricos sobre os espaços diminutos para a mulher que amamenta. Em casa, muitas vezes cuidando de outras demandas e com pouca possibilidade de conectar-se com os filhos. Nas ruas, sofrendo assédio moral quando colocam os seios de fora, na sociedade moldada pelos interesses do patriarcado de erotizar o corpo feminino. Nas empresas, sem condições básicas para a manutenção da prática, como horários flexíveis, salas de ordenha, licenças maternidade inteligentes e outros modelos de acolhimento necessários. 

Fatores atribuídos à fisiologia: Por mais que saibamos que fisiologicamente pouquíssimas mulheres seriam incapazes de amamentar, é natural que mães narrem que não tinham leite de verdade. Simplesmente não o produziam. Vítimas do cenário orquestrado pelas condições acima, não é de se surpreender que o estresse e a falta de acolhimento atuem na produção do leite, convenhamos. Vemos ainda, casos como "eu não tinha bico" ou "meu bebê não sabia pegar" e um dos mais citados "eu fiz redução de seio, não poderia amamentar mesmo" usados como determinantes dos casos de insucesso na amamentação. Mas é inevitável lembrar que uma conjuntura favorável: profissionais especializados, apoio social irrestrito e cultura de amamentação fortalecida reduziria radicalmente a quantidade desses relatos. Portanto, olhar apenas para a fisiologia como fator isolado responsável pelas histórias de desmame nos impede de ampliar a consciência para o fato de que tudo poderia ser diferente, caso estivéssemos amparadas.



Quando a amamentação não dá certo a primeira coisa que temos que ter em mente é que a responsabilidade não está em apenas um fator. Muito menos, no potencial, amor, dedicação e capacidade de uma mãe. Quando a amamentação não dá certo, temos que ter clareza que todo um coletivo é responsável e atuante. E dessa forma, para além de medir a entrega ou vontade de uma mãe, observar também o contexto em que ela e o bebê estavam inseridos. Mães que não amamentaram (e lamentam por isso) podem sem dúvida dividir esse peso com seu entorno. Sua família, seus chefes, seu governo, seus médicos. Essa é uma movimentação madura e serena, como exigirão de nós todas as atividades de nosso maternar. É preciso saber articular o que é do indivíduo e o que é do entorno, fazendo um eterno jogo de vai e vem, para colocar luz sobre nossas próprias histórias, e assim, honrá-las.

Quando a amamentação não dá certo, se a história é honrada, os desafios encarados de frente, sem projeções ou culpas que inebriam a mente e o coração a lucidez pode abrir portas para o novo: chegamos até onde alcança o olhar. Olhando para frente, uma história de insucesso inspira outra de sucesso. Serve de experiência. Pode ser usada de apoio. Pode motivar outras boas práticas e busca de realizações nas infinitas experiências de ser mãe. A amamentação é o comecinho da jornada.

Essa experiência está para além de seus benefícios, muito embora esse texto comece falando deles. Amamentar não é garantir benefícios, e não amamentamos para ter vantagem de nada. Amamentar é sem dúvida uma experiência do SER MULHER. De superação de obstáculos e muitas vezes de sucumbir a eles. E seguir em frente. Essa ótica une todas nós e nos fortalece enquanto mulheres, em luta por espaço, direitos e cultura feminista. Mesmo quando a amamentação não dá certo.

Texto especial de Anne Rammi para o Blog do Cacá