A pediatra húngara Emmi Pikler é mundialmente reconhecida por seu trabalho emancipante e respeitoso com crianças. Um dos pilares de toda a sua práxis - que data do fim da segunda guerra e se estende até os dias de hoje no Instituto Lóczy, coordenado por sua filha e sucessora Anna Tardos - além da livre motricidade, é o poder do vínculo respeitoso entre criança e cuidador.
Para Pikler, o crescimento emancipado da criança acontece apenas dentro de uma área de segurança que ela tem sobre o mundo que a cerca e sobre si mesma. Essa segurança existe à partir das condições ambientais e emocionais.
Não há crescimento sem afeto. E dela não vamos discordar.
A abordagem Pikler é muito categórica sobre o conceito de segurança afetiva: aos adultos cabe respeitar a criança como uma pessoa completa, com expectativas próprias, com peculiaridades intransferíveis.
E o desenvolvimento dessa relação de respeito se dá através de nada mais nada menos do que cuidado. Para Pikler, é nos rituais cotidianos de cuidado com o bebê que mora a oportunidade de desenvolvimento de segurança através do afeto e portanto oportunidade de crescimento sadio.
E vejam que interessante: todo o trabalho base de Emmi Pikler aconteceu com crianças órfãs da guerra. A necessidade de fazer um grupo de crianças muito pequenas superar desafios de forma empoderada era maior do que ficar discutindo se o pai troca as fraldas, se a mãe cozinha com orgânicos e amor e de quem era a função de lavar a roupa.
Não havia pai, não havia mãe. Mas havia quem cuidasse, e através do cuidado muito respeitoso, quase metódico, havia afeto. Fica nítido nesse trabalho que não existe outra forma potente de crescer que não seja através do balanço delicado entre liberdade e segurança. E o meio? Cuidado afetuoso.
Porque estamos contando tudo isso? Pensamos que a abordagem Pikler pode servir de fomento para as reflexões que temos feito atualmente sobre os novos paradigmas familiares.
Muito temos debatido sobre "papéis" de pais e mães, dentro das novas organizações familiares. Enquanto revemos o jeito que parimos, alimentamos, comemos, compramos, queremos também que as relações familiares sejam equânimes, com possibilidades de vivências verdadeiras para todos. O paradigma da mãe que cuida e do pai que provê já não sustenta tantos núcleos familiares e não contempla necessidades individuais de muita gente.
No entanto, são tantos paradigmas como esse a serem quebrados, que muitas vezes deixamos de lado o olhar cauteloso para a importância do cuidado básico. Com nossos filhos, conosco, com nossas casas. Nossa geração parece ter estabelecido uma relação milagrosa com as coisas: roupas que se lavam sozinhas, bebês que dormem num passe de mágica, comida que aparece no prato.
Cuidar de um filho é também estar presente, brincar, contar história, passear. Os filhos são nossa responsabilidade inclusive na hora de pagar a escola, mas não é a isso que se resume a mater-paternidade.
Quantas de nossas questões sobre dificuldades em nossas relações, inclusive com os filhos, estão vindo da falta de um olhar atento, tempo e disponibilidade para o cuidado básico, com eles e com a vida?
Voltando a Pikler, uma preciosa contribuição: o investimento afetivo nos momentos de cuidado alimenta a criança de segurança para se desenvolver melhor e mais independentemente em outros momentos. E isso se resume a alimentação, higiene e sono.
Fica aqui a reflexão: como está a nossa disposição para o cuidado básico afetuoso para com nossos filhos? E para apimentar um pouquinho: como é a disposição para o cuidado básico geral da nossa existência - desde a casa que sujamos até a comida que comemos? Estamos olhando para esses momentos como algo integrado à vida, e portanto importantes, ou estamos fugindo dos cuidados para exercer apenas uma parte do pacote de ser adulto?
Neste sábado no Espaço Nascente temos a Roda de Pais, com o tema Tirania X Autoridade
A roda de Pais é uma proposta de tempo e lugar para debater questões da paternidade contemporânea, mediada pelo Cacá e a dupla do BebêGrafia, Victor Farat e Rodrigo Bueno.