terça-feira, 13 de setembro de 2016

A Culpa é da Mãe! Onde está o Pai?

PARTE 1

Antes de iniciar a nossa série de conversas “A Culpa é da Mãe!” e “Onde está o Pai?” precisamos introduzir um modo de pensar distinto do jeito frequente de pensar as crises e dúvidas diante dos acontecimentos do nosso dia a dia, principalmente quando se fala de filhos.

Vamos começar com um exemplo:
Pense em uma criança, um menino com seus 3 anos que já anda, fala o suficiente para um diálogo, tem vontades próprias. Uma criança que encanta e incomoda os adultos a sua volta diante do exercício da sua autonomia. A mamãe e o papai levam o menininho para uma festa cheia de crianças, brinquedos bacanas, comida gostosa e cheirosa, ambiente colorido, personagens infantis, amigos, gritaria, corre-corre, empurra-empurra, brinquedos altos e distantes do chão, personagens gigantes com bocas grandes e vermelhas, comidas quentes ou frias demais, adultos que se dão o direito de tocar e dar bronca no menininho sem cerimônia, pessoas estranhas.


Diante desse cenário conflitante, papai, mamãe e menininho podem seguir alguns caminhos:
1. Pai e Mãe empurram o menino para aquele universo de atração e repulsão, espaço de presença e ausência. Pais que, para a criança, “não querem” ele por perto, e, para os pais, o que eles “querem” é que o menininho aproveite o lugar bacana. Nessa situação, a criança pode sentir-se magoada com o “empurrão” e colar nos pais, Ou arriscar-se no ambiente externo sem se perceber pequena num mundo de adultos, num ambiente de adultos;


2. Pai e Mãe, ao contrário do modo anterior, julgam o lugar perigoso e temem pelo filho e, sem perceber, seguram-no, achando que estão protegendo o menino para que ele não corra risco nenhum naquele lugar cheio de perigos. O ambiente é visto como ameaçador. Já a criança, diante da atitude de proteção dos pais, pode viver um medo paralisante, ou um “tudo pode” perigoso, desafiando os pais;


3. Pai empurra o filho e, ao mesmo tempo, Mãe segura o menino, ambos partindo das suas histórias e experiências como aluna(o) e como filho(a). Nessa situação, as verdades prontas dos pais não deixam lugar para as experimentações necessárias da criança. Poder relacionar-se com outras pessoas. Poder relacionar-se com este novo ambiente. Nessa combinação, uma criança pode “escolher” confiar no pai Ou na mãe, e, seguir no seu processo de desenvolvimento isolando partes em si, parte do pai e parte da mãe, e fora de si, ambiente seguro e ambiente perigoso, acreditando em mundos fragmentados!


E aí, estão entendendo aonde queremos chegar?! São verdades distintas convivendo no mesmo lugar! Todos querendo o bem estar (?) do seu jeito, nas suas dúvidas e certezas. Cada corpo, de modo objetivo e subjetivo, vai vivendo os seus Conflitos, interna e externamente a cada um. O menininho, a mamãe e o papai e todos os presentes na festa estão habitando o mesmo espaço mas o sentem, percebem-no e agem de modos distintos. Temos, no exemplo dado, um campo de forças com várias orientações e, pasmem, todas são verdades possíveis! Podem ser vistas varias dimensões de um mesmo lugar e com cada um, simultaneamente, percebendo determinada parte do mesmo acontecimento.

E agora, que loucura é essa? Como vamos viver sem o conhecido e falido controle das coisas ao nosso redor?! Como podemos propor liberdade com limites?! Existe liberdade com limites?!

Nossas conversas, aqui lançadas, vão propor negociações entre as várias verdades que coexistem no mesmo ambiente. Ambiente é entendido como o lugar no qual encontramos as diferenças e semelhanças, no qual cada um define, até certo ponto, o certo e o errado para si mesmos. A criança decide em quem confiar, quem define este ambiente seguro.

Vamos interagir por meio de perguntas e respostas, de propostas de questionamentos. Vamos falar sobre temas como: pés para dentro ou pés para fora do carregador; bebês/crianças sentadas em W, pode?; postura em pé, correta ou errada?; Mamãe X Papai, quando dar colo ou encorajar um afastamento, etc...

Fiquem conosco e nos ajudem partilhando os questionamentos que acompanham vocês. Quem sabe duas pessoas, um médico (pediatra) e uma fisioterapeuta (terapeuta alfa corporal), que unem suas forças, podem promover uma reflexão compartilhada?! 


PARTE 2

Como falar sobre as necessidades e os interesses que acompanham os corpos presentes nas famílias sem reconhecer as partes distintas que precisam e devem coexistir/dividir o mesmo espaço? A única verdade absoluta que permeia as relações familiares e sociais é a de que uma verdade só não contempla os aspectos singulares de todos os que convivem em um mesmo ambiente. Cada um traz seu próprio olhar e a própria forma de sentir e perceber uma situação. Cada um traz sua verdade diante da mesma situação, baseada na sua própria história.

Continuamos provocando um modo de pensar novo para, então, sermos capazes de conversar sobre aspectos mais objetivos. Uma tentativa de instalar um ambiente que favoreça determinada escuta e possa gerar condição para que cada um aposte em influenciar e ser influenciado, resultando numa troca favorável a todos. Isso é diferente de afirmar OU negar a informação com a qual estamos em contato. A percepção de uma realidade em camadas, na qual o melhor não corresponde ao idealizado, mas ao que é possível, isto é, ao melhor possível, não ao melhor idealizado. Baseando-se no melhor possível, cada um participa da situação do seu jeito e age buscando o melhor que não exclui novas possibilidades. Não exclui porque negocia com as diferenças. De que modo? Estabelecendo uma composição entre várias partes, uma negociação entre as referências, entre as pessoas presentes no acontecimento, entre as possibilidades/impossibilidades de ações. Tudo isso é importante, mas, o principal é ter a capacidade em desconstruir a ilusão de uma técnica infalível para lidar com as diversas situações.

Quando tratamos do tema filhos, essa característica do certo OU errado, do melhor OU pior fica acentuada. Os temas podem virar arenas de combate gerando medo, isolamento, enfraquecimento, raiva e desinformação. Ao invés de colaborar uns com os outros, abre-se a possibilidade de acusar uns aos outros. Na tentativa de encontrar uma ação mais amorosa e protetora e, ao perceber uma ação diferente no outro em relação ao seu filho, muitas vezes a conversa vira uma briga. O que um fala é ouvido como ameaçador e não como a possibilidade de fazer diferente.

Vamos pensar nos corpos da mãe e do quase bebê em seu ambiente uterino e problematizar a afirmação de que “a culpa é da mãe”.

O corpo do bebê, antes de nascer, permanece dentro do corpo da mãe. Dentro, o corpo dele é contornado pelo corpo da mãe que, para o bebê, é uma outra camada de si, que o sustenta, vitaliza e contém. Não existe o outro, tem ele, o bebê. Não é por mal; simplesmente ele precisa crescer e viver e não sabe nada além disso. Para tal aventura, conta com o espaço, nutrientes e disponibilidade do que vai chamar, no futuro, de mãe. Nessa fase, não existem consciência, palavras e ações escolhidas. Existir é a questão que move o corpo do bebê e seu corpo orienta o organismo na direção de mais vida. Claro que existem outras camadas da existência do bebê, coisas que desconhecemos, talvez. Para a continuidade dessa vida, entretanto, o corpo da mãe é ambiente necessário. A mãe existe a partir da própria experiência de vida desse bebê. E a partir desse bebê.

Para o corpo da mãe, o bebê ocupa o espaço possível e o quase impossível. De modo objetivo e subjetivo, o bebê vai ocupando muito espaço, dentro e fora da vida da mãe, mesmo antes de nascer. Partes vitais da existência da mãe são espremidas e vivem a experiência de perigo. O diafragma, por exemplo, músculo importante da respiração, localizado entre o tórax e a cavidade abdominal. No organismo, esse músculo, vai separar e aproximar qualidades aéreas das terrestres, pensamento e digestão, por exemplo, além de ser o principal músculo da respiração. Durante a afirmação da vida do bebê, no amadurecimento do corpo dele, o corpo da mãe vive o risco de negação de vida em si, vivido na falta de espaço para respirar. A expansão do bebê interfere na possibilidade de expansão de sua mãe. Essa realidade que pode ser tanto objetiva como subjetiva, geralmente, não impede que a mãe ame e espere alegremente a chegada do seu bebê. Antes mesmo do bebê nascer, ela, frequentemente, já sonha com características e modos de se relacionar com essa parte de si, que vai ter um nome que ela vai escolher. Ela prepara e antecipa a realidade que o bebê vai viver e tem certeza de que ele vai ser muito feliz. A mãe consegue se expandir a partir desse bebê quando se percebe gerando vida dentro de si. É uma experiência subjetiva, pois seu corpo está impedido de expandir.

Fusão de corpos, essa é a realidade comum entre bebê e mamãe. O pai, onde está o pai nesse momento? (Iremos falar sobre isso em outra publicação)

Vocês enxergam as possibilidades de conflitos na experiência da mãe que coexiste com a experiência do bebê? É só bom? Só ruim? Existem conflitos legítimos? Será possível acreditar em fórmulas prontas para viver os acontecimentos que se configuram tendo os corpos da mamãe e do bebê fusionados?

No mesmo ambiente, vamos enxergando realidades distintas. De modo objetivo, para o bebê, o corpo da mãe inexiste, tudo é ele mesmo. E, para a mamãe, de modo subjetivo, o bebê já existe, com base nas suas expectativas. A expectativa de presença do filho, para a mãe, gera um ambiente de possibilidades/impossibilidades. O bebê é tão vital dentro de si quanto um órgão como coração ou fígado. Mas a sua relação com esse filho nascido confirma nela as possibilidades e impossibilidades imaginadas.

Como será que cada um, mãe e bebê, vive e sente essa realidade de verdades distintas coexistindo no mesmo espaço e tempo? Onde fica o papai diante dessa fusão? O reconhecimento dessa fusão pode gerar reflexões importantes. O reconhecimento da fusão, objetiva e subjetiva, pode orientar os corpos para aquilo que vitaliza esses corpos.

Quando entendemos que as relações são baseadas em verdades distintas, somos capazes de pensar de modo a caber mais gente. A falta de percepção daquilo que acontece simultaneamente, como no exemplo dos corpos do bebê e da mãe, interrompe o diálogo entre as pessoas no aspecto mais rico da interação: as diferenças de percepção, de consciência, de ação e de conhecimento de cada ser humano coexistindo no mesmo espaço e tempo. A possibilidade de estarmos bem diante do conflito.

Estamos conversando sobre nos aproximarmos baseados na semelhança, mas somos capazes de seguir nos desenvolvendo apostando também na diferença. A partir das diferentes formas de perceber o ambiente e de reagir a ele, podemos construir em nós mesmos novas possibilidades de ação.

Compartilhe suas reflexões. Vamos co-operar o texto e os saberes, dando mais sentido para a nossa participação. Qual o recorte que você faz desta nossa reflexão compartilhada?

PARTE 3

DENISE:
Confesso que me senti “perdida” quanto ao tema “Onde está o Pai”. Aceitei e me deixei ficar neste ambiente estranho, acho que me senti um pouco como um pai. Diante de tantas discussões sobre o lugar da mãe, me vejo na dúvida sobre o lugar do pai. O quanto o tema mãe, mãe/filho, mãe/pai, mãe/pai/filho, mãe/dupla jornada, mãe/com e sem apego são abordados? Nas conversas informais e nos estudos científicos, sempre é a mãe que segue centralizando as duplas, os trios, as dificuldades e as certezas. A mãe é o corpo que orienta o caminho a ser feito. Isso é tão objetivo, tão concreto. Onde fica nossa subjetividade?

Diante dessa experiência, resolvemos escrever a duas vozes. Pensamos que é urgente desfazer a fusão, diferenciar o pai da mãe para, só então, podermos aproximar esses dois importantes lugares que duas pessoas devem ocupar quando resolvem ter um filho(a). Cacá, quais são as suas impressões diante da necessidade em diferenciar o pai da mãe? 

CACÁ: 
Sim, chego na conversa trazendo muitos questionamentos. 
A 1ª reflexão é sobre quando nasce a possibilidade da paternidade? Para mim, nasce a partir da experiência como filho. Possivelmente da própria experiência como um filho nascido e não da gestação do seu filho. Se vem da própria experiência do corpo em fusão, já está presente desde o começo?

O 2º questionamento é o de que a paternidade não é uma experiência tão corporal quanto a maternidade: será? Alguns homens vivem esta corporalidade de forma intensa durante a gestação. Poderia supor uma fusão mais subjetiva, embora as variações hormonais do pai durante a gestação comprovem uma participação corporal intensa.

Uma 3ª questão é: onde fica essa fusão? Poderia supor que a experiência como filho na fusão com a própria mãe pode ser revivida pelo pai nesse processo de gerar um filho. Nesse sentido, dependendo do grau de amadurecimento e fusão do filho atual com a mãe atual, o pai que vem surgindo pode encarnar o próprio corpo de pai, de fato. O Pai poderia, objetiva e subjetivamente, dar contorno ao corpo fundido da mãe/filho. A paternidade estaria em criar um ambiente propício a essa gestação/fusão.

DENISE:
Acompanhando você, penso na fusão do corpo desse filho com o corpo dessa mãe. O pai ou mãe de hoje, que um dia experimentou a fusão com o corpo da própria mãe, precisa se diferenciar desse corpo. Diante do processo de vida no qual “nasce fundido”, separa-se como menino e jovem; o filho só pode virar pai, de fato, na diferenciação do adulto. Sem a condição de adulto, o pai não pode habitar, de modo integrado, o seu lugar. Lindo isso, né?! A necessária e importante fusão do começo da vida, falamos sobre isso no texto “II - A Culpa é da Mãe! Onde está o Pai!”. 

Precisa desfazer, de fato, a fusão, o necessário e importante descolamento de corpos em suas ações, comportamentos, emoções e saberes. É importante a aceitação e a possibilidade de viver as diferenças que vão surgindo, cada vez mais, durante o crescimento dos filhos. Diferenças que garantem que um corpo siga vivendo sem o outro corpo. É preciso ter a certeza de que em vários momentos, o pai e a mãe não poderão estar com seu filho, por exemplo, estudar na mesma escola, dançar na balada com os amigos, fazer o exame do vestibular, etc...

Esse é o momento no qual reconheço duas importantes ações do pai, acompanhar e auxiliar a mãe nessa jornada de fusão E de descolamento. Ora a fusão, ora o descolamento, ambos são momentos que podem ser bem difíceis para a mãe que vem surgindo. São situações que se alternam ao longo de toda a formação do filho, gerando conflito.

CACÁ: 
A participação do pai nos cuidados dos filhos revela a possibilidade do cuidado do outro e, ao mesmo tempo, ameaça a fusão materna. O vínculo paterno expõe possibilidades de outros vínculos e fragiliza a certeza da fusão, da onipotência que ela traz em si. Nesse conflito, o pai pode ser aquele que (não) auxilia a mãe. O pai existe como outra possibilidade e experiência de cuidado. Como um amparo e um perigo. E quando ausente ou enfraquecido na sua relação com esses corpos fundidos, aparece como a incorporação da ausência que virá do processo de desfazer a fusão. Ele vai existir em presença ou ausência. Lugar difícil este do pai. 

Pensando a paternidade como ambiente, ela traz a informação de ambiente seguro, protegido ou poderá trazer a experiência de ausência e das questões ligadas a esta ausência.

DENISE:
Difícil tarefa para as duas pessoas que decidiram viver a realidade de serem pai e mãe. Como a mãe, a deusa do acontecimento vai dar ouvidos para um simples mortal? E o pai, o guardião dos territórios, como vai fazer isso, cruzar essa barreira sem atacar, julgar e criticar?

O corpo da mãe determina e orienta uma importante função, ela vai gerar uma vida. Nesse sentido, parece que o pai, diante de um conflito, pode ir embora, e a mãe é obrigada a ficar com a sua cria, ou submeter-se aos comandos do pai para que ele fique. No início da vida do bebê, a fusão dos corpos orienta e determina as ações da mãe. Depois essa realidade se fixa com a crença das próprias mães que se instalam em um lugar de que só elas sabem cuidar do filho Ou ele, o pai, não quer participar. Os estados de raiva, inveja, medo, humilhação, vitimização podem proliferar nesse ambiente no qual a mãe é a melhor e o pai é o pior, onde a mãe está presa e o pai está livre. 

CACÁ:
A mãe se inicia como um ambiente interno e o pai como um ambiente externo. Há, na natureza humana, algo de dentro para fora que está intimamente ligado às nossas capacidades e interesses e, ao mesmo tempo, existe um chamado de fora para dentro despertando em nós outras possibilidades que inicialmente não conhecemos. Já iniciamos a jornada da vida numa constante relação de dentro para fora e de fora para dentro. Inspiração e expiração. Pai e mãe e as heranças trazidas neles. Quando a relação pai/mãe, ambiente interno/externo estão fragmentadas, interferem no desenvolvimento do filho. Durante a vida, esse filho busca integrar a experiência materna com a paterna e apaziguar o conflito que vive, podendo assim estar em contato consigo mesmo e seu ambiente externo independente das expectativas trazidas nessa herança.

DENISE:
Diferenciado!


Denise De Castro: fisioterapeuta e terapeuta Alfa Corporal, escritora e pesquisadora independente. O livro “O Método Corpo Intenção. Uma terapia corporal da prática à teoria”, editora summus, tem lançamento previsto para outubro deste ano. Cadastre-se no site para informações / Leia as Crônicas de Bebês


Dr Carlos Eduardo Corrêa (Cacá): médico e pediatra aqui do Blog do Cacá.