segunda-feira, 31 de outubro de 2016

“Destruam todas as rocas”

*Por Bianca Santana

“Destruam todas as rocas”, ordenou o pai de Aurora para livrar a filha da maldição de furar o dedo e adormecer. Sabemos como segue o conto de fadas: anos mais tarde, a princesa fura o dedo em um fuso escondido em uma das torres do castelo. Bela Adormecida, encantada com o instrumento desconhecido, faz cumprir a profecia.

Sempre lembro da história quando o assunto é criança e tecnologia. Proibir o uso das telas – seja de celular, tablet, computador ou da televisão – me parece pouco estratégico, porque perdemos a oportunidade de educar para o uso destes dispositivos. Podemos até ter a sensação de pleno controle em determinada idade. Mas com o passar do tempo, e o acesso a mundos que pouco controlamos (mais conhecidos como a casa de parentes ou de amigos), nossas possibilidades de controlar vão diminuindo. 

O que fica é o que ensinamos e as relações de confiança de construímos. E como ensinar um uso saudável e seguro das tecnologias? Se você mesmo passar horas e horas em mais conexão com as telas que com as pessoas, qualquer discurso vai perder força frente ao exemplo. Estabelecermos nós mesmos relações de equilíbrio com o digital me parece essencial. Além disso, oferecer a oportunidade de brincar ao ar livre em praças, parques ou no quintal vai ser sempre muito interessante, nem precisa colocar como contraponto à tecnologia. 

Cena da versão Disney para o clássico da Bela Adormecida

Convidar para a leitura no papel, cozinhar, conversar, pintar, moldar, os jogos de tabuleiro... Apresentar inúmeras possibilidades de diversão constrói um repertório no qual o aplicativo do celular é apenas uma delas. Aqui em casa, quando o pai apareceu com um tablet, delimitamos dois horários semanais para utilizar o aparelho. Semanas depois percebemos que não era necessário porque o uso livre estava equilibrado nos cerca de 30 minutos a cada dois ou três dias, como havíamos pensado. Mas seguimos observando se estamos na medida. 

Vale ressaltar aqui que respeito e compreendo quem defende que crianças não tenham acesso às tecnologias ou quem acha que o uso livre indiscriminado é válido. Se responsabilizar pela educação de alguém implica tomar as decisões que julgar mais pertinentes, em realidades que são sempre distintas. Esta é minha visão, depois de alguns anos trabalhando com esta temática em escolas e projetos educacionais, e da relação com meus filhos, de 8 e 6 anos, e minha filha de 4. 
Temperança. 
Equilíbrio. 
Busca pela medida. 

Passar o dia na frente da tela é evidentemente nocivo. Mas presenciar minha filha filmando a peça de teatro dos irmãos no quarto de casa com o celular, ou encontrar o filho do meio fazendo buscas sobre os animais da Floresta do Congo me mostram como os usos do digital podem ser interessantes. Fico incomodada quando o mais velho fica vidrado em um jogo na tela, mas melhora bem quando percebo a mesma concentração para montar um lego ou terminar de ler um gibi. Usos ativos e criativos dos dispositivos tecnológicos podem ser mais uma, das muitas brincadeiras das crianças urbanas. 

*Bianca Santana é jornalista e professora. Doutoranda em Ciência da Informação e mestra em Educação pela USP.