quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A culpa é dos pais!

Assim que eu terminei de ler sobre o mal que as telas faziam para as crianças, desliguei a televisão que eles já assistiam há mais de duas horas, o bebê inclusive, enquanto eu terminava de responder alguns emails alongando prazos,  e pedi que fossem tirando a roupa para o banho. 

Eles jogaram no chão. Eu pedi que colocassem no cesto. Oito vezes.

Paguei algumas contas enquanto dava as ordens do esfrega a cabeça, tira a mão do olho do seu irmão e amamentava. Deixei algumas contas vencerem, por que né? Décimo terceiro é para os fortes. O aviso do celular me alertou de um novo artigo no portal de mães: "A importância do contato olho no olho no momento da amamentação".

Um bateu no outro, eu dei um grito, o bebê me mordeu, eu dei um grito, ele chorou, os dois choraram. Eu dei um grito para o pai fazer a janta. Rapelamos a despensa. Amanhã tem que fazer mercado.

É bom cozinhar. Comida de verdade, né? Faz bem para a criança. E cozinhar é um ato de amar.
Que bom. 

Nos produtos do mercado não está escrito isso. Uma pena. Nem tampouco colocaram o feijão na altura das crianças. O que eles vêem são aqueles produtos que não se cozinha. Que não tem amor. Que matam, entopem as artérias e viciam! São os que tem desenhos infantis. Isso é estranho.

Fico parada na frente dos produtos que matam e tem desenhos infantis enquanto o bebê derruba todas as caixas de suco. Recolho. O mais velho some. Grito. Estava com o pai. Ufa. Cozinhar é amar. Não tinha ninguém mesmo para ficar com eles. Sabem como é... férias escolares.

Nos últimos dias ficaram um pouco com as avós, enquanto precisávamos trabalhar. Trabalhamos quase nada. Trabalhos de madrugada. Trabalhar de madrugada é uma coisa muito ruim. E os direitos dos trabalhadores? Ninguém se importa. Não pense, trabalhe. Foi golpe? 

Estou no mercado com três crianças. Foco.

Os personagens que estampam os sucos de caixinha que recolhi são os mesmos dos gibis que a escola, quando está funcionando, insiste em usar para alfabetizar meu filho. Dos 365 dias no ano, 60 das férias ele não terá contato com os gibis. Nos outros terá. Ele gosta desses personagens. 

Li no facebook que tem que ler o rótulo. Do lado do personagem tem uma laranja. Deve ter laranja nisso. Laranja é bom, espremer laranja é melhor, mas que legal se eu não precisar lavar aquele monte de louça hoje!

Açúcar, água, xarope, aroma igual de laranja.
Vão beber água.

Choram na mesa porque queriam suco. Qual? Da personagem. Era para eu fazer o Baby Led Weaning, mas varrer o chão 3x por dia não é amor. Diferente de cozinhar, né? Eu parei de tomar refrigerante. "A gente educa pelo exemplo". Mas tomo água com gás. O bebê já sacou que é diferente da água normal, e quer a minha. Só tem esse copo, eu não comprei porque não dava para carregar.

O bebê cospe o restinho de comida que tinha na boca no meu copo. Nojo. Tchau último copo de água com gás. Entram 4 WhatsApps urgentes, uma corrente de Whole 30 e oito mensagens desejando que uma senhora morra porque é esposa do ex-presidente que essas pessoas não gostam. Eu não gosto dessas pessoas. 

Divago: foi golpe.

Não querem comer o verde. Carlos Gonzalez falou que tudo bem. Pode sair da mesa. Não querem sair da mesa, querem comer. O bebê taca coisas no chão. Baby Led Weaning da depressão.

Viram um restinho de batata palha na geladeira. Quem comprou isso cheio de sódio? É gostoso. Se espalhar em cima do verde eles comem o verde. Espalha. Eles separam. Traição. E tem sobremesa mãe? Tem fruta. Quero banana. Comprei maçã. Eu quero abacaxi. Tem maçã. Não quero nada.

Comeram petit suisse na casa da avó. Viram propaganda de petit suisse na casa do avô. O melhor amigo adora esse petit suisse. 

Mãe, me dá? 
Não. 

Mãe e o suco?
Não.

Mãe compra a nave?
Não.

Mãe, posso ir brincar na chuva de pijama depois do banho?
Não.

Mãe, posso ir na casa do Marcelo agora?
Não.

Pega aquele quebra cabeça de mil peças?
Não.

Comprou o suco da Turminha?
Não.

Você tá brava? 
Não.

Bebê puxou a tampa do forno e bateu na cabeça. Não deu tempo de falar não. Eu estava ali, falando não. Gelo. Não tem gelo. Porque não enchemos a forma de gelo nessa casa? Use o milho congelado ou a placenta. Era para fazer um ritual mas não deu tempo. Milho transgênico. Mamãe ruim. Pode milho no Whole 30? Comida de verdade, bicho e planta. Mas tem que ser orgânico. Poxa vocês nem recolhem os pratos?

Pode ligar a TV?
Pode. Depois dos pratos.

O prefeito anuncia que vai fazer parcerias com o setor privado para pintar a cidade de novo. Tinha ficado feia mesmo. Em troca vai fazer publicidade. De que hein? Vai ter coisa para criança? Vai ter publicidade nos brinquedos do parque? Vai ser só para adulto? O mais velho se interessa pelo paraciclo. Achou bonito aquele formato de coração. Na propaganda, uma marca. 

É refrigerante mãe?
Não.

Posso experimentar?
Não.

É gostoso?
Não.

Você já tomou isso?
Não.

Como você sabe se você não tomou?
Eu tenho super poderes.

Eu penso quantos dias falta para acabarem as férias. Me arrependo, porque se fosse semana de aula, meia noite já era hora de estar todo mundo dormindo há horas. Três pessoas para levar em três escolas diferentes no mesmo horário. Não pode flexibilizar horário para se adequar à rotina da criança. Estamos criando gente extremamente mimada. Eu ouvi no rádio a psicóloga falar. Adaptemos, ainda bem que é férias. Cadê seu aparelho? Esqueceu na avó. Problemas de arcada, entrou barata em casa os dois choraram como eu, traumatizaram já. O bebê quis pegar na mão. Alguém deve estar desejando que eu morra, não é possível. Deve poder comer barata no Whole30. Bebê Whole30. Gonzalez deixaria.


O Pai levou o lixo para fora. Volta com uma revista, a vizinha jogou no lixo. 



As crianças estão acima do peso e a culpa é dos pais.
Pela primeira vez uma geração vai morrer antes que a precedente. Quem mandou não cozinhar com amor? A culpa é dos pais.
As indústrias fabricam comida que faz mal para a criança, e a culpa é dos pais.
Os governos deixam essas indústrias anunciarem seus produtos sem nenhuma regulação, inclusive na cidade, e a culpa é dos pais.
Os supermercados colocam os produtos ao alcance das crianças, e a culpa é dos pais.
Os licenciadores fingem que fazem gibis, enquanto o que fazem é mover uma indústria multibilionária que explora a ingenuidade da infância para ampliar mercado. E a culpa? É dos pais.
As escolas se isentam. Educação vem de casa. Mas salgadinho vem da cantina. E a culpa é dos pais.

Vamos dormir meninos?
Choram. Não querem. Carinho, colinho, estão estafados. Vamos contar história. A gente tem bons livros. Eles tem camas e cobertores. Somos privilegiados. Passa a raiva. O cansaço fica. O bebê mama a noite inteira. Vamos desmamar. Mulher cruel. Amanhã começa de novo. Vou tatuar no braço:

NÃO ASSUMA A CULPA POR ALGO QUE NÃO DEPENDE APENAS DE VOCÊ

Amanhã começa de novo.